Morreu, aos 78 anos,
o dramaturgo, encenador, ensaísta, teórico
de teatro e político, Augusto
Boal, conhecido internacionalmente pela criação
do Teatro do Oprimido e pelo trabalho que realizou nos
anos 60, no Teatro de Arena de São Paulo. Morreu
aquele para quem o teatro não era apenas um espectáculo,
mas uma
forma de vida. Porque
tudo que fazemos no palco fazemos sempre em nossas vidas:
nós somos teatro! Considerava
Augusto
Boal, nomeado Embaixador Mundial do Teatro pela Unesco,
tendo integrado, igualmente, e integrou a lista de candidatos
ao Prémio Nobel da Paz em 2008. O
discurso do último Dia
Mundial do Teatro
é da sua autoria: Assistam ao espetáculo
que vai começar; depois, em suas casas com seus
amigos, façam suas peças vocês mesmos
e vejam o que jamais puderam ver: aquilo que salta aos
olhos.
Este texto é,
simultaneamente, um testemunho, uma singela homenagem
e um grato reconhecimento a Augusto Boal, de quem muitos
ensinamentos recebemos, com quem muitos sonhos e projectos
partilhámos, com quem muitos fóruns de discussão
realizámos. Nele se registam memórias de
uma pessoa viva, com ganas de dizer algo através
do teatro, nos domínios da intervenção
política e social da terapia, da educação
e até do teatro. Mas, à parte tudo isso,
Augusto Boal, malgré lui, foi uma personalidade
que contagiava o seu entusiasmo a sua força de
viver, o seu charme, a sua alegria, a sua tolerância,
a quem estivesse perto de si. Uma simples conversa com
ele transformava-se num happening teatral. Quando
analisava um espectáculo dramático, falava
mais da forma como o público intervinha ou como
reagia e experienciava o actor ao representar a peça.
Conhecemo-lo nos idos de 75. Nessa altura integrávamos
a Direcção da Escola
Superior de Teatro do Conservatório Nacional de
Lisboa e, por inerência, à Comissão
de Gestão da Casa de Garret. Víamos, nessa
altura, Teresa
Mota atarantada de um lado para o outro, perguntando-nos
porque não se contratava o Augusto
Boal, o homem do Teatro Arena de São Paulo,
o homem que podia revolucionar a Escola de Teatro, numa
altura em que alguns revolucionários descentralizaram
a revolução para Évora, desejando
o fim da Escola Superior de Teatro do Conservatório
Nacional. Ele tem de ficar em Lisboa, dizia-nos
Teresa Mota. É que David Mourão Ferreira,
Secretário de Estado da Cultura não tinham
honrado o compromisso de contratar Augusto Boal e a equipa
que trouxera consigo. Contagiados por Teresa Mota e Richard
Demarcy que invocavam ser um gesto revolucionário,
contratar Augusto Boal, começamos a seguir a direcção
do realismo e a exigir o impossível. Encarregou-se
Amilcar Martins, que integrava o elenco directivo da E.
S. T., de falar com Augusto Boal, enquanto eu iria invadir
a secretaria do Conservatório Nacional (invadir
é o termo, já que nessa altura, era a mesma
“assaltada”por mais de 30 pessoas que integravam
as diversas Comissões Directivas das cinco escolas)
para sondar as possibilidades de contratar Augusto Boal.
Nenhuma!, respondia-nos o lendário senhor
Antunes, chefe de uma secretaria em verdadeira revolução
em curso. Horas depois, lá obtivemos a possibilidade
de contratar Augusto Boal por 12 contos mensais, salário
que era estipulado para todos os trabalhadores da casa.
Chegava-nos, entretanto, a boa nova de que Augusto Boal,
gratíssimo pelo interesse, aceitaria a nossa proposta.
Mas 12 contos era o que pagava pela renda da casa que
alugara na 5 de Outubro e tinha a cargo mais três
pessoas de teatro, necessárias à consecução
do projecto que definira com David Mourão Ferreira,
que lhe virou as costas, por razões que ainda hoje
não percebemos. Numa operação de
assalto cultural à mão armada impusemos
(ainda não sabemos como) a contratação
de Augusto Boal e mais três, a Cecília, sua
companheira, a Márcia e um outro profissional de
que já não nos lembramos o nome. Esse gesto
mereceu, como se compreende, críticas contundentes
por parte dos Velhos do Restelo da Casa de Garret: O
que é que um químico percebia de teatro?
perguntavam-nos. Mas o tempo brindava os ousados e a revolução
fazia milagres.
Com Augusto Boal
procedemos à reformulação de todos
os Planos de Estudo da Escola Superior de Teatro, não
porque fossem maus, mas porque os novos ventos da revolução,
impunham outros. E a renovação fez-se, a
revolução seguiu o seu processo em curso
e a Escola Superior de Teatro ia funcionando, quando,
nessa altura, muitas outras escolas e universidades mais
clássicas paralisavam. Criava-se então o
Curso de Formação de Actores-Animadores
com grande estrondo e rodeado de escândalo, mesmo
em tempos de revolução. A inovação
é isso aí, cria sempre oposição
- sossegava-nos, serenamente, Augusto Boal.
Embora a excelente
resenha de Isabel
Coutinho no jornal público não refira,
foi grande o contributo de Augusto Boal, para a renovação
do teatro português e, sobretudo, para a formação
pessoal e profissional de muitos actores e encenadores
portugueses: colaborou na reforma da Escola Superior de
Teatro do Conservatório Nacional de Lisboa, colaborou
com várias companhias de teatro, como por exemplo,
a Barraca, orientou muitas acções de formação,
não só no domínio teatral, mas no
da animação, da sociologia e da terapia.
Quando Chico Buarque
lhe escreve a carta musical, o
Meu Caro Amigo, Boal estava em Portugal. No Brasil
a coisa estava preta e era preciso muita mutreta para
levar a situação. Tivemos o privilégio
de atender o telefone do Chico Buarque que queria anunciar
a saída do disco ao Boal: - Está aqui
um tipo a dizer que é o Chico Buarque, o quê
é que eu faço? dizíamos. Se
ele diz que é o Chico é porque é
mesmo, dizia Boal, afastando de si uma tonelada de
papéis, percorrendo o espaço até
ao telefone com a sua rizada inconfundível.
Agora desaparecido,
Boal não é lembrado como merecia pelos portugueses.
Deixo aqui os meus agradecimentos ao contributo que Boal
teve na minha formação e rendo-lhe a minha
homenagem pelo muito que fez e criou. Das técnicas
de teatro fórum, ao teatro do invisível
muito do que propos nos vários livros que publicou,
do teatro à terapia, é aplicado em vários
domínios da actividade humana. Ao meu, outros testemunhos
se registaram:
Augusto Boal,
um
brasileiro extraordinário, que me marcou profundamente
pelo amor que tinha ao teatro e à humanidade-
diz Isabel Santos em entrevista ao jornal LusoPresse.
Por seu turno, Amilcar
Martins para quem Boal é o exemplo de cidadão
humanista e democrata considera tê-lo o mestre influenciado
de forma tão fecunda nas práticas teatrais
e de expressão dramática. Experimento, também,
e mais uma vez, um sentimento de orgulho por, em 1975/1976,
ter sido eu o porta-voz da Comissão Directiva no
convite a Boal para ser professor de Práticas Teatrais
e Interpretação na Escola Superior de Teatro
do Conservatório Nacional de Lisboa, refere
ainda Amilcar Martins, hoje professor de Expressão
Dramática e Teatro da Universidade Aberta. Avelino
Bento, hoje professor da área científica
da Expressão Dramática e Teatro da Escola
Superior de Educação de Portalegre, reconhece
hoje a influência de Boal nas suas práticas,
ainda que na altura estivesse descentralizado em Évora.
Ainda o ano passado,
em Portugal, o grupo teatral A Barraca levou à
cena A
Herança Maldita de Augusto Boal, com adaptação
do texto e encenação de Helder Costa que
no JL n. 1007, p. 6, disse refere que com o 25 de
Abril, Boal chegou à terra libertada portuguesa.
Aceitou com alegria ser encenador da Barraca durante três
anos . [...] Boal, o mestre com que a BARRACA
teve a felicidade de aprender nos primeiros passos, um
irmão mais velho que teve a ternura e a compreensão
para o desejo de Risco e Descoberta do novo desse grupo
recém-nascido.
Aqui, no Quebeque,
de onde escrevo, a
Liga Nacional de Impro, aplica muitas (eu diria todas)
das técnicas de Boal, do teatro fórum ao
teatro do invisível, passando pelo Ritual ao Contrário
e à Denúncia do Cabotinismo. Lembro-me de
me ter surpreendido com o grande conhecimento que os quebequenses
têm de Boal. Quando referi que havia trabalhado
com ele, foi como se dissesse que tinha tido contactos
com Deus.
Discutimos
com Boal a paternidade do Teatro de Jornal, que ele reivindicava
como sua no quadro do Teatro
do Oprimido. Expusemos-lhe a evidência: o Teatro
de Jornal havia sido criado por Jacob-Levy
Moreno, que o praticava em Viena, antes de Boal ter
nascido. Ele usava essa técnica para fins exclusivamente
terapêuticos – respondia Boal. Não,
não é verdade – contra-argumentávamos
- antes de Moreno enveredar pela terapia, pelo Psicodrama,
visava a estética ainda que com objectivos sociais
e políticos, como de resto viria a acontecer com
Brecht ou mesmo o próprio Boal. E este diálogo
didáctico, à boa moda do Teatro Fórum,
continuava. Não sei se fruto deste debate, o certo
é que Boal pouco ou nada voltou a falar do Teatro
de Jornal.
Quanto a nós
as suas principais criações e inovações
foram, sem dúvida, o Teatro
Fórum e o Teatro
Invisível, técnicas que hoje são
mais utilizadas nos espaços político, social
e terapêutico do que no artístico, como pretendia,
inicialmente, o seu criador. Aliás, Augusto Boal
acabou por praticar, depois de eleito vereador da cidade
do Rio de Janeiro pelo PT (Partido dos Trabalhadores),
o Teatro-Fórum, onde a partir da intervenção
dos espectadores, criava projectos de lei. Nascia o Teatro
Legislativo: após
transformar o espectador em actor, Boal transformava o
eleitor em legislador. Utilizando o Teatro como Política,
em Sessões Solenes Simbólicas, encaminha
à Câmara de Vereadores 33 projectos de lei,
dos quais 14 tornam-se leis municipais, entre 1993 a 1996.
Muitas
das suas técnicas de intervenção
política são hoje macaqueadas nos chamados
"apanhados" das televisões. Com efeito,
a técnica do teatro invisível, que se caracteriza
por colocar em cena pessoas que não têm consciência
de estarem a fazer um qualquer papel num qualquer guião
pré-estabelecido por um grupo de actores ou não
actores, foi "agarrada" pelo actor, também
desaparecido recentemente, Dom
DeLuise apresentador do programa de vídeos
caseiros "The New Candid Camera", que chegou
a ser exibido em Portugal e inspirou muitos programas
de apanhados, relegados muitos deles para o telelixo.
Uma honrosa excepção: o programa de Joaquim
Letria, que procurava elucidar os telespectadores
sobre os malefícios dos automatismos sociais em
determinadas situações.
O conjunto das técnicas
que Augusto Boal criou, no quadro do TO,
Teatro do Oprimido, inspiram um leque alargado de
práticas: todos os seres humanos são
actores - porque actuam - e espectadores - porque observam.
Somos todos 'espect-actores.